sábado, 5 de março de 2011
Faculdade .
E NO INÍCIO, O COMEÇO:
Entrar para universidade é sempre um marco na vida de qualquer indivíduo, principalmente por conta de todo o processo que isso envolve. E é sempre assim, lá está ele, o pobre adolescente, perdido no mundo, recém saído do 2º grau. Quando está quase acreditando que se livrou de toda essa bobagem de escola e estudo, alguém vem e o diz que ele deve escolher uma profissão, se preparar para uma coisa chamada vestibular e freqüentar um local hostil e desconhecido chamado faculdade. Ora bolas, qualquer um sabe que um adolescente sente dificuldade para resolver até o que vai comer na lanchonete, quanto mais decidir o que quer fazer do resto da sua vida. Mesmo despreparado, o jovem finge estar pronto e logo em seguida é atirado cruelmente numa rotina de estudos forçados, para tentar adquirir em um ano, todo o conteúdo que não conseguiu em uma vida escolar inteira que esteve atirando bolinhas de papel nos colegas. Com os nervos em frangalhos ele passa no final do ano por uma série de exames, que dizem querer avaliar os seus conhecimentos gerais, mas que na verdade não passam de um teste de resistência psicológica. E ele sobrevive! A primeira fase é moleza, se não entrar na faculdade pode tentar a vida como jogador de futebol: nunca uma série de chutes foi tão certeiro! E cruza na frente e chega na segunda fase, a prova é dissertativa mas ele sabe que todo aquele discurso que usava para enrolar os pais, amigos, e professores ainda ia servir para alguma coisa! E finalmente, esta lá, o nome da criatura na lista dos aprovados. Entrou! Ele respira aliviado. Finalmente após todo o sacrifício e sofrimento, poderia ir para a tal faculdade decidir o seu futuro a base de chopp e azaração. Agora no primeiro dia de aula ele percebe que o pesadelo não acabou, falta passar pelo último estágio da barbárie: o trote.
O TROTE
In minidicionário Luft: “2. Zombaria, troça a que veteranos nas escolas sujeitam os calouros”
O trote é uma espécie de ritual iniciação aplicado nos novatos ou “calouros” da faculdade. É aplicado pelos outros alunos do próprio curso, os conhecidos “veteranos”. Ocorre normalmente nas primeiras semanas de aula e sua principal função é a “integração” entre os alunos novos e os antigos, de um mesmo curso.
O CALOURO
Nas primeiras semanas de aula o calouro é uma presa fácil. Mesmo armado com a melhor roupa, o melhor cabelo, e a melhor personalidade, ele, que só descobriu onde fica a faculdade há três dias, se sente completamente desorientado. Não sabe onde fica o banheiro, em que sala vai estudar, o que vai estudar e por que ele está ali e não na praia! Um calouro sempre reconhece o outro pelo olhar perdido, ansioso, de quem quer a mãe. E por isso mesmo calouros sempre andam em bando, como as aves, que é para se orientarem. Embora todo calouro seja um ser humano, durante o trote ele é bicho, e portanto é tratado como tal. Normalmente os calouros dividem-se em:
· Calouro Masoquista: Já no primeiro dia de aula ele sai a caça dos veteranos munido do kit-trote (composto de toalha, sabonete, roupa limpa, curativos, calmantes e gás paralisante). Sofreu tanto para passar no vestibular que acha que tem direito ao trote. Ele exige ser pintado, xingado, humilhado, e acha pouco! Fica sugerindo formas requintadas de torturas para os veteranos utilizarem com ele, e ajuda a zoar os outros calouros. É o primeiro da fila do vexame, e faz até poesia: “Me pinta, me borra, que no próximo período eu vou à forra!”.
· Calouro Rebelde: Ele acha tudo uma palhaçada. O trote é palhaçada, pintar é palhaçada, faculdade é palhaçada, e se formar também é a maior palhaçada! E se encostarem em um fio de cabelo dele, ele chama a polícia ou então o Circo Garcia!
· Calouro 171: Ele acha tudo tão legal, realmente adora o trote, mas... que pena! Não pode ser pintado porque tem alergia! Pôxa, também não pode participar das brincadeiras por causa da coluna. Pedágio não dá, ele tem hora marcada no médico. Chopp? Ele pode beber sim, o médico libera. Tudo bem para participar da choppada? Legal, então até lá!
· Calouro Carente: Ele não gosta do trote, mas prefere participar a parecer chato. Ele precisa de aceitação, quer ser amado. Como não suporta ter que sustentar a própria opinião, fica com a opinião da maioria.
· Calouro Gandhi: É pelo boicote pacífico. Vem no primeiro dia, e se não gostar do que vê só volta no outro período, quando o trote já acabou.
· Calouro Confete: Para ele tudo é festa! Quer pintar, pinta. Quer xingar, xinga. Ele não está nem aí e quer é mais. O negócio é acabar logo com o trote e partir para a melhor parte: a choppada.
O VETERANO
Todo veterano já foi calouro um dia. Ser veterano é como uma espécie de promoção: se você sobreviver ao trote que lhe aplicarem, razoavelmente são, então tem condições de se livrar do 1º período, e passar o resto da sua estada na faculdade aterrorizando os calouros vindouros. Por isso, todo veterano conta secretamente os meses, esperando o dia do trote chegar. É quando finalmente ele vai poder ir à forra de toda a sacanagem que fizeram com ele. Muitos veteranos simplesmente ignoram o período de trote e seguem normalmente, outros não concordam, alguns vivem pelo trote, formando vários tipos:
· Veterano Mestre: É quem está à frente do trote. Uma espécie qualquer de “líder”. O trote tem que parecer ter, mesmo que minimamente, alguma organização, afinal os calouros têm que pensar que aquela sessão vexatória ao qual são submetidos não é vã, tem um propósito sublime. É o Veterano Mestre quem recolhe todo o dinheiro dos pobres calouros e o dos calouros pobres, e é normalmente quem conduz as brincadeirinhas de péssimo gosto que são praticadas, assim como as gincanas. Costumeiramente este tipo de veterano foi um Calouro Confete típico, e o seu cujo único objetivo na vida continua sendo a choppada.
· Veterano Feliz: É o que entra numa espécie de transe orgástico durante o trote. Zoar e pintar os calouros o traz um êxtase indescritível. O Veterano Feliz com certeza foi um Calouro Masoquista. Ele acha que tudo legal e tudo faz parte. Se deixar ele entra no trote de novo e se pinta junto com os outros. Como ele adorou ser xingado, acredita que os calouros também se deliciam quando são chamados de burros, idiotas, e coisas do gênero.
· Veterano Zangado: É o tipo mais sádico. Ele foi um Calouro Carente, odiou o trote mas suportou resignado. Agora os novatos vão sentir a sua ira, vai fazer em dobro o que fizeram com ele. Se ele agüentou, os outros vão ter que agüentar também. Faz questão de ser antipático. Como não tem muitas oportunidades de se auto afirmar, aproveita o trote para mostrar o quanto é mau, e provar que sim, apesar de ninguém notar, ele tem uma personalidade que o colega dele emprestou e depois não quis de volta.
· Veterano Soneca: Está agora bocejando e achando o trote a maior perda de tempo do mundo. Acha tudo uma palhaçada. Aliás, desde quando ele era um Calouro Rebelde que ele achava tudo uma palhaçada. Até tenta protestar, mas não lhe dão muita atenção desde quando tentou colocar sua opinião quando era calouro. E como aquilo tudo lhe dá muito sono... Opa! Dormiu!
· Veterano Dunga: Como bom Calouro Gandhi, o Veterano Dunga está mudo, meditando a validade do trote. Ainda não foi possível ouvir a sua opinião, porque parece que ele não fala.
· Veterano Dengoso: É o ex-Calouro 171. Ele quer participar, adorou ser calouro e adora ser veterano. Mas pôxa! Não vai poder ajudar a organizar o trote junto com os outros. É que ele está de viagem marcada para Alemanha, onde vai comprar chucrutes! Mas no dia da choppada ele já está de volta, que coincidência!
CALOUROS X VETERANOS
O encontro com os veteranos não é lá muito amistoso, principalmente se estes, fazem questão absoluta de serem o mais antipáticos e odiosos possível. Logo no primeiro contato, os veteranos explicam que tudo aquilo pelo que os calouros passarão é uma simples brincadeira. O calouro não é obrigado a participar, e se desejar, pode ir embora! É lógico que por conta disso ele não vai participar da choppada, não vai se relacionar com os outros veteranos e se tornará a pária do curso, eternamente mal visto e rejeitado. Mas ele só participar do trote se quiser! Afinal, para que ele precisa se relacionar com o restante do curso? Ele pode protestar, tem todo o direito, mas bem... vai ter que suportar o exílio. Mas, que isso gente! Ninguém ali obriga ninguém a nada! E se ele resolver participar tem que seguir as regras, sejam elas quais forem, entrou na chuva é para se molhar.
Durante o trote existem várias brincadeiras, que variam de curso para curso. Algumas são inofensivas e até divertidas, e o restante além de idiota e infantil, é também violento. Tudo o que ocorre no trote tem como objetivo arrecadar dinheiro para a choppada, portanto, no geral, o trote pode ser dividido em duas fases:
· Fase seca: É a fase inicial, onde o calouro se apresenta e é apresentado. Normalmente ganha um crachá de identificação com alguma frase ou figura de péssimo gosto, onde ele escreve o nome, o curso, e às vezes o apelido idiota que os veteranos lhe enfiam pela garganta abaixo. Esse crachá vale uma fortuna, se ele o perder, vai ter que vender a própria mãe para custear outro. Em seguida os calouros se submetem aos delírios de poder dos veteranos fazendo gracinhas para diverti-los. Os calouros dançam, rebolam, andam em fila “elefantinho”, cantam uns refrões pouco criativos e tudo mais que possa causar bastante constrangimento. Para arrecadar mais dinheiro, normalmente, acontece alguma gincana onde ele tem que trazer itens muito fáceis de serem encontrados como uma foto autografada do Reginaldo Rossi beijando os pés de Nossa Senhora do Rosário, e coisas do gênero, e pagando em dólar quando não trazem.
· Fase molhada: Inaugurada com o batizado, onde os veteranos molham os calouros. Porém o que causa maior furor é, sem dúvida, a pintura. Isso acontece porque durante esta prática os veteranos têm a chance de retomar ao seu não tão distante tempo de infância, quando faziam pintura com os dedos no maternal. Em muitos casos além de tinta também são utilizados outros materiais como ovo, farinha de trigo, lama, e etc. Os veteranos aproveitam para exercitar seu dom artístico durante o trote e fazem pinturas surrealistas no corpo, roupa e cabelos dos calouros. Em seguida quando o indivíduo, completamente pintado, apenas lembra vagamente um ser humano, ele é atirado no pedágio. Ou seja, vai para algum espaço público onde vai ficar pedindo dinheiro aos passantes. Com a crise brasileira atual, a prática do pedágio está sendo muito difundida, inclusive com quem não pertence à nenhuma faculdade. Correm rumores que o Sindicato dos Pedintes está se articulando para tentar regulamentar a mendicância do trote enquanto profissão.
Após arrancar todo o dinheiro possível dos pobres calouros, todo o curso se dirige para o santuário acadêmico: o bar, e lá realizam o tal esperado ritual de união e confraternização: a choppada.
A CHOPADA
O evento etílico mais esperado da graduação. É a etapa final de todo o ritual de iniciação chamado trote. Agora todos os veteranos vão para um bar junto com os calouros que sobreviveram e convertem todo o dinheiro conseguido em chopp. É neste momento que ocorre a verdadeira integração entre calouros e veteranos. Quando todos estão completamente bêbados, todo mundo integra todo mundo, e se desintegra no final em vômito na privada do bar. É na choppada que os calouros descobrem para que sofreram tanto com o vestibular: para freqüentar a Universidade do Chopp, e se formarem alcoólatras, e descobrem que só há três maneiras de se sair da faculdade: viciado, neurótico ou homossexual.
DEPOIS DO FIM
Depois do trote, tudo volta ao normal. Os calouros voltam a ser universitários perdidos, os veteranos guardam seus instrumentos de torturas e capuzes, e, surpreendentemente, se descobre que eles são pessoas muito legais. O ritual da choppada prossegue a cada sexta-feira, e todos continuam se reintegrando e desintegrando pelo restante de sua vida acadêmica.
É claro que há diversos tipos de trote, com as mais diversas variantes, e alguns completamente diferentes do demonstrado. Há trotes, por exemplo, que visam arrecadação de alimentos, para ajudar instituições. Outros que procuram o equilíbrio entre as brincadeiras e o respeito aos limites do próximo, sem retaliação. No entanto a imensa maioria dos cursos prefere utilizar o chicote e a cara feia, num processo que tende a se perpetuar e intensificar.
Se os calouros gostam ou não, é um mistério. A verdade é que a maioria não reclama (pelo menos não para os veteranos ouvirem). Se o trote promove ou não a tal “integração”, também é um mistério, pois a grande maioria dos calouros espera ansiosa a oportunidade de ir à forra do que sofreram com os próximos calouros. Uma realidade é de que os trotes estão cada vez mais violentos, e pode-se concluir que, ou a necessidade de aceitação e passividade dos calouros é muito grande ou então que o número de masoquistas por metro quadrado na graduação está aumentando sensivelmente. Que o trote é importante, não há dúvidas. É algo inclusive desejado, uma espécie de comemoração. Só que por comemoração deve-se ler festividade incondicional sem nenhum tipo de opressão.
Não se pode culpar totalmente os veteranos, pois eles estão fazendo apenas o que lhes é permitido fazer. Se um calouro se opuser, ele vai sofrer retaliação, se todos os calouros se opuserem, novos métodos terão que ser implantados. Mas também não se pode absolver estes aprendizes de Sade, pois é necessário apenas um neurônio em reflexão para perceber que muita coisa que acontece no trote é desnecessária e agressiva para com o próximo, e que muito do que ele faz, é motivado principalmente por desejo de vingança pelo que sofreu. De graduandos espera-se um mínimo de maturidade e criatividade para atividades divertidas e conscientes. Seria importante corresponder.
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